Degustação Zé das Campas
A maioria das plataformas libera algumas páginas para degustação da leitura dos livros!
Poderia ser exclusividade do site do autor, mas não deixarei passar, vou servir umas páginas a mais para quem vem degustar por aqui! Se gostarem deixem seus comentários e perguntas, terei o prazer de responder.
Vou colocar um índice caso você não leia tudo em uma única “tacada”, assim vai poder ir rápido até onde parou!
Índice
O término de uma parceria, uma vida e um trono
A zona de choque
Revelando a verdade
Conhecendo o senhor Invisível
Tatá Caveira e a porteira do cemitério
Sinopse e Confira na Amazon
Vou começar pela dedicatória, a sinopse está na página de trajetória do livro que deixo no final da degustação.
Dedicatória
Algumas pessoas foram muito importantes na trajetória deste livro e tiveram inúmeros papéis no decorrer de sua escrita.
Em primeiro lugar, ao meu grande amigo de jornada, Zé das Campas. Sem mais palavras, nem saberia como expor o que sinto no papel.
Ao maior incentivador, tanto do Zé quanto meu, Pierre, que se dispôs a transcrever o livro logo no começo. Ele foi “o leitor” de capítulo por capítulo, controle de qualidade e fez todas as exigências possíveis para o andamento.
À minha mãe, dona Isabel, apoiadora sempre a cada passo, cuidadosamente leu e releu para corrigir o português.
Ao meu pai, sr. José Maurício, que não se encontra mais entre nós, mas sei que está de braços dados comigo, de onde ele estiver.
À minha irmã Márcia e ao meu irmão Maurício, os dois leitores e cobradores da obra. Márcia ainda revisora final do original antes de enviar para a editora.
Aos amigos do grupo espírita autônomo, que foram os leitores, críticos, comentaristas e fãs, dedicaram seu tempo para dar osfeedbacks.
E a alguns amigos leigos no assunto, que se propuseram a ler. Amigo é para essas coisas, não é mesmo?
Gratidão pelo companheirismo, amor e amizade de todos vocês.
Como quase todo mundo pula as primeiras páginas, prefácio, palavra do autor, etc. Vou passar logo para o que interessa! Risos. (Essas partes deixa para ler no livro mesmo)!
O término de uma parceria, uma vida e um trono
Vou começar esta narrativa, da qual muitos já ouviram falar. Para algumas pessoas eu mesmo contei. Outros conheceram a história passada pelos meus ouvintes, mas até agora somente conheciam a introdução, então vou me aprofundar.
Certo dia, eu estava em meu trono, minha casa, onde durante muitos anos habitei sendo um Exu da Falange do Lodo. Ouvi um chamado de meu burro (aparelho espiritual), que já não estava como antes, vibrante e enérgico, somente um fino pensamento. Percebi que algo estava errado e, sem nem pensar, logo estava ao seu lado.
Quando cheguei, vi-o dentro de seu corpo carnal. Estranhei, pois já tinha se rompido o cordão com seu espírito, mas ele continuava em seu corpo. Chamei-o pelo nome e ele não me escutou, aproximei-me e ele não me viu. Pensei, então, que ali me encontrava para poder ampará-lo na vida que tinha começado, a vida espiritual.
Concentrei-me em meu trono e com toda minha força, ativei minhas energias. Imediatamente senti um choque em todo meu ser, o que me apagou. Não sei quanto tempo fiquei desacordado. Aqui deste lado também podemos ficar nesse estado! Comecei a ouvir pássaros e o vento batendo em uma vegetação. Aos poucos, fui retomando a consciência e me vi diante de uma campa, em um cemitério muito bonito, com muitas árvores e belos jardins. Quando parei de olhar ao redor, ainda meio zonzo, percebi que estava diante de onde meu burro tinha sido enterrado. Olhei a data e fechei os olhos para saber em que época estávamos. Sem êxito. Estranhei, pois não me sentia eu mesmo, então tentei ativar meu trono e tive outro apagão.
Novamente fui acordando com os sons do ambiente, sempre muito agradáveis, e deparei-me com a campa. Desta vez, não fiquei olhando ao redor. Fixei direto no nome e na data de falecimento, e outra vez tentei saber em que época eu estava. Não invoquei meu trono, pois não queria outra vez ficar apagado. Não sabia o que estava acontecendo, mas as tentativas estavam me desgastando e o resultado eram tempos sem consciência. O tempo exato não sei, somente sei que da primeira vez que acordei para a segunda, a paisagem tinha mudado, as plantas estavam todas secas ou completamente diferentes.
Outra coisa muito estranha é que não sei por que, mas eu somente ficava parado em frente à campa, olhando para ela e lendo repetidamente o nome e a data. Quando dava por mim e fazia menção de sair dali andando ou mesmo tentando me projetar para outro lugar, via-me novamente em frente à campa. Não sei quanto tempo se passou.
Sentia-me cansado e minha mente não funcionava direito. Recostei-me na campa e tentei contemplar o local. Doce ilusão, somente consegui ver árvores ao redor e os jardins, mas não tinha mais sensações do vento nem dos pássaros cantando. Resolvi tentar métodos arcaicos, gritei:
— Tem alguém aí? Alguém pode me falar onde estou? Em que data estamos?
E nada, nenhuma viva alma aparecia. Pensei: Nossa, que tédio, eu, que amo conversar, não consigo sair do lugar em um canto onde não existe ninguém. Estou realmente ferrado.
Nesse momento, ouvi alguém atrás de mim, falando:
— Olá! Tem alguém aí?
Olhei para trás e nada vi. Nossa! Que esquisito, agora sou eu que estou sendo assombrado, nunca pensei nisso! Resolvi deixar para lá, achei que estava ouvindo demais, e outra vez a pergunta:
— Olá! Tem alguém aí?
Dessa vez respondi:
— Tem, quem está perguntando?
— Eu me chamo Fulano, estou dentro deste buraco e não sei como vim parar aqui.
Gelei dos pés à cabeça. Era o meu burro que estava falando de dentro da campa. Ele não devia ter reconhecido minha voz, pois não me chamou como de costume: “senhor Lodo”, então resolvi começar a falar com ele como se não nos conhecêssemos.
— Me chamo José. — Não sei por que me veio esse nome à mente, mas foi o que saiu. — Estou aqui também nas mesmas condições que você, não sei como vim parar aqui e não consigo sair. Estava até pensando que somente eu estaria aqui.
— Que bom que você apareceu, pelo menos para eu escutar alguma coisa, já que apaguei e acordei nesta caixa e em total escuridão. Pelo menos consigo ouvir você, José. Onde você está também é assim, não dá para se mexer e é um breu só?
Não tive coragem de dizer que estava ao ar livre, vendo árvores e jardins. Minha situação não era tão ruim, afinal conseguia me mexer, embora limitadamente, já que não saía dali, mas podia levantar-me, sentar-me, deitar-me e havia claridade. Aí respondi:
— Sim! Quase isso. Tenho um pouco de mobilidade, mas não consigo me mexer muito e também não sei onde estou nem que data é hoje — tentei falar algo parecido com a verdade. Mas ele insistiu na pergunta:
— E também é escuro aí?
— Consigo ver algumas coisas pelo pouco que posso me mexer! Mas vi que você se tranquilizou conversando. O que você faz da vida? — Queria ver se, mudando de assunto, eu não precisaria ficar descrevendo minha situação bem melhor que a dele.
Também assumi essa postura por medo de que ele me pedisse para tirá-lo de lá, o que não poderia fazer sem minhas forças “funcionando”. Não saberia nem como começar a ajudá-lo. Era o que eu mais queria, pois havia passado muitos anos ao lado dele e trabalhávamos muito juntos.
— Bom, eu sou babalaô do candomblé há muito tempo, tenho uma casa enorme que comando. Você é adepto dessas religiões ou é católico e não acredita nessas coisas?
— Sim, acredito, gosto muito dessa parte da espiritualidade.
— Ah! Que bom, assim teremos muito papo pela frente. Como estava dizendo, minha casa recebe muita gente famosa, políticos, pessoas de muitos recursos, sabe?
— É, como sei! — Nesse momento senti o sabor de um belo uísque em conjunto com uma bela costela bem temperada. Isso nunca tinha acontecido, estava batendo saudades do que um dia tive. Muita fartura.
— Senhor José, pelo que sinto em sua resposta, o senhor também é um homem de recursos, então!?
— Sim, sou sim! Meu trabalho me possibilitava ter tudo o que queria! Tudo do bom e do melhor!
— Pois é! O meu também, depois que me tornei babalaô não faltaram dinheiro, mulheres e muito, muito conforto na minha vida.
— Então ser babalaô é como ter um trabalho?
— Para mim é, sim. Como eu conseguiria outro trabalho que me trouxesse tantas mordomias e riqueza como esse!? Você não faz ideia do que é ser o centro das atenções e ter tudo o que você quer!
— É, acho que não faço mesmo! Não desse jeito.
— Senti você apreensivo! O que aconteceu?
— Nada não, Fulano, só lembrei de uma pessoa que conheci e fiquei um pouco triste! Continue, gostaria de saber mais sobre como funcionam esses trabalhos.
— Tem muitos espíritos que incorporam em mim, mas meus maiores trabalhos são feitos com o Exu do Lodo, para mim, o “senhor Lodo”. É meu companheiro e me enriquece muito, ele faz a maior parte dos trabalhos e não nega trabalho nenhum. Ele pede o que quer para executar e eu também cobro o que vejo que a pessoa pode pagar. Como só atendo gente de recursos, me dou muito bem!
Isso bateu em mim como uma tremenda bordoada, não sabia que era assim que ele me via. Pensei que o respeito que tinha por mim era algo além do que eu poderia conseguir de material para ele. Durante todo o tempo trabalhando juntos, nunca me foquei no que ele conquistou com nossos trabalhos. Somente olhava e via o que eu usufruía. Interessante ter que ficar nessa posição que estávamos para tudo parecer muito diferente aos meus olhos!
Mas não me deixei abater pela bordoada. Agora, sim, queria saber como ele se sentia e conduzia tudo.
— Mas me fale uma coisa, se me permitir adentrar mais no assunto, se não estiver confortável em falar, esteja à vontade para não responder. Esse “senhor Lodo” faz isso de bom grado, deixa o senhor cobrar por serviços que ele faz?
— Eu nunca perguntei. Ele sempre coloca o preço dele, e eu, quando estou sozinho com as pessoas que atendo, cobro o meu. Acho que ele não liga, porque nunca está presente nessas negociações, sempre converso com as pessoas depois do trabalho, quando ele vai embora. E sempre o trato com tudo do bom e do melhor, ele também recebe agrados meus, o local da casa que ele tem é uma sala maravilhosa! Bebidas, comidas, festas, nunca deixei faltar nada. Mesmo porque sempre quero que ele volte, não é?
— Bom, acho que ele aproveita, então! Desculpe ter feito a pergunta.
— O que é isso, senhor José, estamos conversando, não é? Pode ficar à vontade, e parece que te conheço faz tempo, o assunto está fluindo muito bem.
— Pode me chamar de Zé, não me sinto bem me chamando de senhor. Então, já que me deu liberdade, vou continuar perguntando. Pelo que estou vendo, o “senhor Lodo” é como um funcionário, mas o chama de senhor?
— Está certo, Zé, não coloco mais o senhor. Não vejo dessa forma. Pela primeira vez, acho que alguém me colocou dessa maneira. Ele acaba sendo um espírito que me serve, eu trago as pessoas com os problemas delas e o chamo para resolver seja lá como for ou como ele quiser, e existe um pagamento para ele e eu ganho o meu também. Para manter a casa e minha vida de conforto. E o chamo de senhor pelo respeito que tenho às forças dele.
— Se ele não trouxesse tanto retorno ao senhor, você continuaria trabalhando com ele?
— Provavelmente outro tomaria o lugar dele! Mas não tenho como te responder isso, pois ele nunca vai largar essa boa vida que tem e nem eu.
— Desculpe a pergunta, vi que o senhor se exaltou, vou parar de falar um pouco e tentar descansar, esperamos que alguém passe logo por aqui e que possa nos resgatar, não é, senhor Fulano?
— Sim! Bom descanso, Zé!
Demos uma pausa na conversa. Nesse instante olhei ao redor e já estava escuro, com uma bela lua cheia! Deitei-me sobre a campa e fiquei olhando o céu, pensando em tudo o que tinha sido dito. Senti-me traído, magoado, com raiva. No tempo que passamos juntos nunca pensei que era assim que eu era visto por alguém a quem me dediquei tanto.
Tinha vontade de gritar que era eu e que estava sobre a campa dele naquele momento, apreciando a paisagem, e que ele era um ingrato e todos os palavrões que eu conhecia vinham à minha mente. Mas respirei fundo e me contive. Precisava saber mais sobre tudo isso e entender como eu tinha ido parar ali. Não conseguia acessar meu trono e, com isso, nem minha falange.
Com esses pensamentos adormeci. Não me sentia tão esgotado assim há séculos! Nem me lembrava da última vez que tinha precisado adormecer.
Lentamente fui acordando com o sol banhando meu ser, sensação agradável de sentir. Parecia que estava novamente na carne, sentindo meu corpo pesado e sem mobilidade, pelo menos não a que eu estava acostumado nos últimos dois séculos.
Ainda permanecia na campa, tentei levantar-me e sair andando, mas novamente me vi em pé, diante daquele tormento. Não tinha vontade de fazer nada, somente sair daquele lugar. Olhei para o alto e agradeci pelo Fulano estar quieto. Só de pensar na voz dele, já subia em meu peito a sensação de raiva e mil coisas passavam pela minha mente. Inclusive, se estivesse de posse das minhas forças e armas, teria dado um fim na existência do infeliz.
Não sei por quanto tempo fiquei procurando ver alguma movimentação ao redor para poder pedir alguma ajuda ou saber se alguém me esclareceria o que estava acontecendo. Infelizmente nenhuma alma! Pensei que até poderia ser uma alma perdida mesmo, mas nada! Comecei a ouvir um choro de desespero e soluços e achei que meus pensamentos tinham sido atendidos, mas era o Fulano. Fiquei um tempo sem falar. Não queria aquele papo novamente, mas acabei me sentindo egoísta, já que estava ao sol e ao ar livre.
— Acalme-se, assim você vai piorar seu estado e ficar cada vez mais desesperado. — Dava para sentir o desespero e o medo em seu íntimo.
— Zé, é você que ainda está aqui também?
— Sim, Fulano! Ainda na mesma, sem conseguir sair desta porcaria que me meti.
— Como assim se meteu, você que quis vir parar aqui nessas condições? Eu te garanto que eu não me meteria em uma situação dessas por livre vontade.
— É, acredito que não mesmo! Estou dizendo que, de alguma forma, minha maneira de levar a vida me trouxe até este momento. Não sei como, mas com certeza, fui eu mesmo que inconscientemente escolhi isso.
— Não estou entendendo, como assim? O que você fez para isso?
— Acredito que muitos dos meus trabalhos afetavam outras pessoas, e pouco me importava. Se eu ganhasse bem, para mim estava ótimo.
— Mas em que você trabalha?
— Eu sou um pau mandado do meu “patrão” para fazer todos os tipos de serviços que você possa imaginar. E, pelo visto, ele ganhava muito mais do que eu pedia e depois ainda me dava umas migalhas para me agradar. Mais ou menos isso.
— Entendi, estou vendo que depois do descanso você está meio seco nas suas respostas. Mas não fique assim, quando eu sair daqui, vou tirar você de onde está e vamos até minha casa para que eu possa te ajudar. Eu chamo o “senhor Lodo” e você pede para ele dar um jeito nesse seu patrão.
Nessa hora ouvi alguém falando:
— Tem jeito não esse cabra! Tá ferrado e ainda se achando.
Olhei em volta, procurei rapidamente onde minha visão conseguia chegar e nada vi. Será que estou ouvindo coisas? Quem teria dito essas palavras estava escutando nossas conversas?
— Fulano! Ouviu alguém falando agora, aqui, perto da gente?
— O quê? Tem mais gente por aqui? Não ouvi nada. Será que nos encontraram? Aliás, o que será que aconteceu? Não consigo me lembrar de onde estava antes de vir parar aqui, será que aconteceu algum acidente que ficamos soterrados?
— Não sei, também não me lembro!
— Voltando ao assunto, posso te dar uma mão se você me acompanhar.
— Sim, pode ser! — Quase não prestava atenção ao que ele estava falando, só queria achar o dono da outra voz. Será que também tinha vindo de alguma campa? Não queria despertar curiosidade no Fulano, mas queria começar a gritar para ver se mais alguém estava ali.
— Não vou insistir, pelo jeito não gostou do convite, estou te oferecendo ajuda!
— Sem ofensa, primeiro vamos sair daqui, depois veremos se te acompanho até sua casa para falar com esse tal de “senhor Lodo”.
— Está certo, mas se fosse você, não falaria com desdém dele desse jeito. Ele pode fazer você se ajoelhar e pedir perdão para poder levantar.
— Não repare, estou um pouco fora de mim, com raiva, então desculpa se ofendi.
Ouvindo o jeito que ele falou a meu respeito, senti-me um carrasco sem coração. Será que eu tinha essa postura mesmo!?
Fechei os olhos, usei todas minhas forças, visualizei meu trono e tentei me transportar para lá, e adivinhe, novo choque e novo baque, apaguei de novo, sei lá por quanto tempo.
A zona de choque
Murmurinhos, gritos, barulheira, fui abrindo os olhos. Estava em um lugar com muita névoa, onde, de longe, eu via movimentações. Pensei comigo que havia conseguido sair daquele lugar e estava próximo a voltar para meu trono.
Fui aprimorando meus ouvidos, estavam muito longe os murmurinhos e as risadas, e bem no fundo comecei a ouvir.
— É ele que trabalhava com Fulano, era o todo-poderoso lá naquele antro.
— O que colocou muitos de nós aqui no lodo.
Nossa, estão falando de mim, será? Tentei me mexer, mas era impossível. Resolvi arriscar fazer uma pergunta, mas a voz não saía. Estava literalmente com medo, cheio de vergonha e querendo muito acordar desse pesadelo.
— Você viu que agora não está tão poderoso e imponente, não é?
— Claro que viu, está paralisado e sem saber onde está! Coitadinho dele, como se não merecesse o que está lhe acontecendo.
— Sabe do melhor? Nós não podemos tocá-lo, porque, pelo visto, a ignorância é que o trouxe aqui, mas não era tão burro assim, não é mesmo? Vai ter consequências mesmo que não sejamos nós a aplicá-las.
— Claro que ficaremos aqui para assistir, já vai valer muito vê-lo sofrer um pouco.
Ouvi uma risada bem alta, agora parecia mais perto, e, em seguida, completou:
— Um pouco, acho que você nunca viu um símbolo ser retirado de um espírito, meu camarada!
Buscava forças para fazer qualquer coisa, nem as mãos nos ouvidos conseguia colocar para parar de ouvir aquelas coisas. Fechei os olhos e, em um segundo, comecei a ver cada trabalho que tinha executado, cada pessoa a quem tinha feito algum mal. Os rostos iam passando pela minha mente e a cada rosto um sentimento me invadia. Dó, pena, tristeza, dor, desprezo. Durante muito tempo fiquei observando minha mente passar o filme dos anos de trabalho com o babalaô.
Dei-me conta de que eu soluçava e o meu rosto totalmente molhado me tirou daquele transe. Não abri os olhos. Não queria ver que continuava naquele lugar, e fiquei com receio de voltar a ouvir aqueles murmúrios. Então pensei como um pedido de ajuda, em uma companheira da minha falange. No mesmo instante me senti flutuando e sendo colocado em uma superfície, e ouvi:
— Meu amigo, não tenho muito tempo com você, te deixo aqui, consegui somente pouco tempo para você se recompor, logo virão buscá-lo.
Sem conseguir abrir os olhos, agradeci e perguntei o que estava acontecendo. Sem resposta. Ela já havia ido embora.
Comecei a me mexer e lentamente consegui abrir os olhos. Soltei vários palavrões, estava contemplando a campa maldita.
— Quem está aí? Pode me tirar daqui? Está me ouvindo?
Era o Fulano. Ignorei e me acomodei. Aproveitaria ao máximo o que minha companheira tinha conseguido para mim, e eu estava exausto, então adormeci.
Como se fosse um sonho, tive pensamentos com todo meu aprendizado e cada conquista na Falange do Lodo, até que, nesses pensamentos, um dos meus mestres se apresentou e disse:
— Quando um dia falei que somente as tarefas que estivessem dentro das leis deveriam ser executadas, você me perguntou quais eram essas leis, onde estavam escritas. Minha resposta foi que não estavam escritas e que você deveria sentir dentro de seu ser, lembra-se?
— Sim, mestre, me lembro!
— Você utilizou a magia e todo o conhecimento que adquiriu a seu bel-prazer, sem se importar se estavam ou não estavam na lei.
— Eu pensei que se estava conseguindo resultados é porque estavam, mestre. — Nunca me aprofundei nesse assunto e não achei que fosse diferente o que estava sentindo.
— Por isso o que está colhendo agora é um tanto quanto ameno perto das coisas que você executou. Espero que você não se esqueça desta minha lição e pense muito nela antes de sair aplicando qualquer novo conhecimento que adquirir, se é que vai ter oportunidade tão cedo.
Acordei na névoa. Agora não estava imóvel, mas não sabia para onde ir. Não enxergava nada, nenhum barulho era audível, estava um silêncio de causar pânico.
Todos esses sentimentos, medo, pânico e as sensações desses momentos eram novos para mim. Se já havia sentido, tinha sido há muitos e muitos anos.
Resolvi tentar me equilibrar, somente sentei-me onde estava mesmo e fiquei de olhos fechados e ouvidos abertos.
Um tempo se passou e comecei a sentir frio. Ouvi, então, passos se aproximando e senti quando pegaram em meus dois braços e me levantaram. Somente os sentia, não conseguia vê-los. Não eram agressivos, muito pelo contrário, foram de uma suavidade impressionante. E um deles falou:
— Você ainda é um dos nossos. Você cometeu erros com o que aprendeu nesta falange e a Lei os sanará, retirando seus símbolos de forças já adquiridos. Se você reparar em seu corpo, todos os símbolos que você absorveu estão perdendo a cor e ficando quase imperceptíveis.
A mim mesmo eu conseguia ver, abri o manto que me envolvia e realmente todos eles estavam se apagando.
— Agora, quando estiverem como esse aqui, transparente, sem vida, você será trazido aqui e vamos retirá-lo. Como seus erros foram, ainda que críticos, por falta de conhecimento e certa ignorância, você está recebendo este tratamento.
— Se quiser sentar-se ou deitar-se, esteja à vontade, logo o superior virá e retirará o primeiro símbolo.
— Obrigado, meus camaradas, mas estou bem assim, ficarei de pé mesmo.
— Acho melhor você se sentar, pelo menos.
Antes tivesse ouvido o conselho, vi um vulto se aproximando e parando à minha frente. Como antes, não conseguia ver ninguém. Parecia que minha vista estava sempre embaçada. Somente quando olhava para mim conseguia enxergar.
— Você entendeu o que está para acontecer e o porquê?
— Acredito que sim, superior.
Não falou mais nada, ergueu um cajado preto, falou algumas palavras que não tenho permissão de repetir e tocou no símbolo que se encontrava em meu peito. Senti queimar até o mais interno de minha alma, aguentei muito pouco antes de cair de joelhos e soltar um grito comprido e apagar.
Os apagões já estavam virando rotina, e sempre retornava para a “bendita” campa. A dor faz a gente pensar muito antes de falar certas palavras…
Não me estenderei mais aqui. Demorou algum tempo até que fossem retirados todos os símbolos. Cada um levou certo tempo para ficar transparente, ainda bem que foi um por um, não sei como seria ter que tirar mais de um por vez.
Ao todo eu tinha cinco símbolos, ainda não havia chegado a Exu dos Sete Lodos, nos intermédios entre um e outro me deixavam na campa. Às vezes eu conversava com o Fulano, às vezes o ignorava, mas já estava virando rotina eu ouvi-lo chorando ou gritando de desespero.
Cada vez que voltava do lugar onde chamei de zona de choque, eu tinha consciência de que eu havia estado na Falange do Lodo, mas a cada símbolo retirado era também esvaziado o meu mental, junto com o conhecimento que eu tinha adquirido para conquistá-lo.
Após o último símbolo, a sensação era de que eu tinha feito uma excursão à Falange do Lodo como um aluno que vai conhecer um museu. Tudo muito interessante, mas nada que eu tivesse um profundo conhecimento.
Até hoje não tenho recordações do que um dia eu aprendi lá. Como utilizei errado, a Lei me tirou o que não dei valor. Se eu um dia quiser ter novamente, terei que fazer igual da primeira vez, passo a passo e começando do zero. Nessa última visita ao trono do Lodo, não apaguei com a retirada do símbolo. Fiquei me recompondo lá mesmo e novamente aquela companheira que mencionei anteriormente me levou de volta à campa. Toda vez que era permitido, ela me dava suporte, foi essencial para eu não enlouquecer.
Revelando a verdade
Durante alguns dias tive paz do Fulano, mas não me perguntem o que aconteceu. Eu realmente não sei, mas parecia que ele havia ido embora.
Achei estranho, mas não puxei papo. Ultimamente era tudo que eu não desejava, ficar papeando com ele.
Pensei em tentar sair dali um pouco, mas tinha receio de que quando começasse a andar, caísse naquela roda sem fim, que me colocava de novo em frente à campa.
Ouvi novamente aquela voz que não fazia a menor ideia de onde vinha, mas pelo visto escutava não só as conversas, como meus pensamentos.
— Aproveita enquanto ele está “dormindo”, os pesadelos dele logo o acordarão. Vai dar uma volta por aí, pelo menos conhece um pouco do lugar, já que está sendo sua casa no momento.
Procurei em volta, mas nada vi, pensei num segundo que estariam me testando ou se seria alguém que estava se divertindo comigo que parecia uma besta aparecendo de segundo em segundo em frente à campa.
— Não acho nada disso! E não é um teste, mas se quer perder mais tempo, em breve ele vai acordar.
— Mas o que tem se ele acordar? Vou estar longe, já que posso sair. — Decidi começar a conversar, não custava tentar.
Como resposta, somente uma gargalhada e mais nada.
Levantei e comecei a caminhar, minha mente focada na voz. Que bom que, pelo menos meus pensamentos a voz respondia! E foi hilário que, quando tentei conversar, a resposta foi uma risada. Lembrei-me muito de como eu era incorporado, adorava dar essas gargalhadas! Bem feito para mim.
Quando dei por mim, estava em outro pedaço do cemitério, também vazio, sem uma viva alma. Avistei um cruzeiro e resolvi ir até lá, olhando tudo com muita atenção, todo o caminho muito agradável, belas flores, árvores e muitos pássaros.
Chegando ao cruzeiro vi um aglomerado de gente e saí correndo para falar com alguém, mas para minha surpresa, ninguém me respondia. Não sei se não me ouviam ou se me ignoravam, até que prestei atenção ao centro do cruzeiro e havia um babalaô oferecendo velas brancas e cantando uma música para as almas.
Prestando atenção, sentei-me perto de uma árvore que dava para ver tudo. Quando acabou a música, vi que uma luz saiu do local das velas e inundou o aglomerado. A luz foi crescendo cada vez mais, até que me atingiu, senti uma enorme paz e o corpo todo sendo energizado. E novamente ouvi a voz:
— Falei para ir conhecer o lugar! Tinha um motivo e você estava com a devida permissão.
Olhei em volta, mas nada! Vou me contentar somente com a voz mesmo.
— Você, da voz — não sabia como chamar —, é invisível? Qual seu nome? O que está fazendo aqui?
— Quantas perguntas juntas! Vai ter que se contentar com uma resposta só! Não estou disponível assim para você.
Pensei o mais rápido que pude nas perguntas e em qual delas seria mais importante para mim naquele estado, então falei:
— Fico contente se me falar por que eu não te vejo.
— Mais perguntas, eu acho que era: “Você é invisível?” Essa eu respondo, não sou não, mas você não consegue me ver.
Nesse instante eu escutei os gritos do Fulano e mal me levantei, já me encontrava em frente à campa. Respirei fundo e me sentei, durante um tempo só fiquei ali, mas os gritos começaram a me incomodar.
— Oh, Fulano! — falei em voz alta. — Por onde esteve?
— Graças, Zé! Acho que peguei no sono e tive muitos pesadelos, não conseguia acordar.
— Quer falar dos pesadelos? — Era mais uma curiosidade minha do que querendo acalantá-lo.
— Uma hora estava acorrentado nas mãos e pés, outra hora estava em uma espécie de areia movediça, em lugares escuros e ouvindo as pessoas me xingarem de todos os palavrões que você possa imaginar, teve coisas que falaram que nem sei o significado. Acordei quando começaram a jogar pedras em mim, e sabe que estou todo dolorido? Foi tudo muito real.
— Você nem imagina o porquê desses sonhos?
— Deve ser porque estou neste buraco, sei lá há quanto tempo, nesta escuridão do cacete. Alguma coisa daqui despertou esses sonhos.
— Está perdendo seu tempo se quer que ele confesse que foi porque era um babalaô ruim! —Novamente a voz aparecendo do nada.
Eu somente ouvia agora. Procurar em volta? Já sabia que não ia dar em nada, e assim me contive. Fiquei quieto, mesmo porque o Fulano poderia me ouvir e querer saber com quem estaria falando. Sabia que ele não podia ouvi-la. Já havia perguntado anteriormente e, se ouvisse, com certeza falaria.
Tinha parado de falar e só o ouvia gemer, acho que pelas dores da surra que havia levado. Sabia que ele tinha sido levado a algum lugar onde pessoas que ele prejudicou e que já tinham feito a passagem estavam “devolvendo” um pouco da crueldade que um dia ele praticou.
Veio à minha mente que eu também deveria estar passando pelo mesmo, que também merecia estar sendo apedrejado, no fim das contas quem era o maioral naquele terreiro? Eu!
Sentimento de culpa, remorso, tristeza, não me sentindo um coitado, mas realmente vendo que eu tinha sido um completo desrespeitoso, tanto com as pessoas como com os meus conhecimentos, principalmente com uma falange toda. Merecido eu não ter mais nada desse conhecimento.
Mas ainda assim, merecia os castigos aos quais meu burro estava sendo submetido. E a voz retornou:
— Cada um é um. E cada um tem o que é seu! Se ficar pensando assim, daqui a pouco vivenciará isso com ele.
— Obrigado pela lição, senhor Invisível.
— Gostei do apelido. — E nova gargalhada.
— Como faço para poder sair daqui, pode me dizer?
Silêncio! Pronto! Já estou eu falando sozinho. Se, pelo menos, pudesse senti-lo, pararia de fazer papel de bobo.
Eu evitava falar com o senhor Invisível, somente conversava com ele por pensamentos, sabia que ele escutava os meus. Mas as respostas dele sempre vinham sonoras, e não conseguia mais ouvir pensamentos dos outros.
Deitei-me sobre a campa e, olhando o fim de tarde, um pôr do Sol que me energizava, lembrei-me da luz das velas no cruzeiro e como elas tinham me dado paz, senti novamente como se estivesse lá. Vi meu corpo se acender, fiquei dias sem ter que dormir, apreciando essa energia.
— Me diz uma coisa, Fulano.
— Sim, pode falar.
— Você acha que tudo isso não está ligado ao seu “trabalho” de babalaô, sendo que você tirava proveito próprio?
— Claro que não! Como assim, proveito próprio? Eu somente cobrava meu tempo, como você acha que eu viveria? Todos precisam comer, não?
— Não sabia que precisava tudo isso para comer.
— Você mal me conhece, como sabe que eu não tinha somente o necessário?
— Você mesmo falou que tinha uma vida boa e cheia de conforto e recursos.
— É verdade, já havia me esquecido de que estamos conversando faz tempo e que já mencionei muito da minha vida. Mesmo assim não acho que tenha relação. O que pensa? Acha que alguém me drogou e jogou neste buraco?
Ouvi gargalhadas, e em seguida, falou:
— Você ainda está tentando isso. Vai passar sua eternidade tentando. Esse aí é um tremendo arrogante.
— Está certo. O que sugere, senhor Invisível? Nem sei mais para que insisto em fazer perguntas. Será que devo falar da situação dele? Será que devo me identificar? Ainda estou muito confuso para decidir.
— Ai, ai… Um suspiro… Nem parece que um dia teve conhecimento.
Fingi que não ouvi, como se fosse possível isso. Com certeza ele sabia que eu somente havia ignorado! Sentei-me na campa e pensei que se pudesse andar, pelo menos nessa rua, conseguiria chegar mais rápido a uma conclusão.
— Está vendo aquele túmulo com um anjo lá no começo da rua? E aquele outro no final, com um escudo de família?
— Sim, estou!
— Esteja à vontade entre esses dois, se passar deles já sabe para onde você volta.
— Isso pode ser bom, se estiver cansado, dou mais um passo e estou em casa num piscar de olhos.
Dando risada, ele falou que eu tinha um ótimo humor, mesmo depois do que perdi, e que isso poderia ser muito bom.
Levantei-me da campa e fiquei andando para cima e para baixo na rua, entre os dois túmulos que haviam sido indicados. Realmente, foi excelente poder ter essa movimentação. Às vezes dava uma paradinha para olhar em volta e acabei vendo todos os túmulos da rua.
O pensamento ia e vinha da minha mente, sem saber ainda como agir. Comecei a andar de olhos fechados e pensei na minha companheira do Lodo, no mesmo instante ela apareceu.
— Olá, velho amigo, me chamou?
— Na verdade só pensei em você, mas que bom que veio, agradeço a prontidão.
— Senti você mais equilibrado e energizado, está se saindo bem, então?
— Não diria que bem, mas estou melhor que ontem! Você pode ficar um pouco hoje?
— Sim, foi permitido, afinal você já fez alguns pagamentos e está se conscientizando do que fez, então acaba tendo suas regalias, não é mesmo?
— Agradeço de coração.
— Você lembra quando fomos… desculpe, você não lembra! Vou tentar colocar assim: em uma aula trouxeram alguns animais para ver como eu me sairia acessando suas mentes e fazendo-os me acompanharem.
— Desculpe por interromper, minha companheira, mas senti que participei dessa aula. Obrigado pela sua leveza em se colocar sozinha na experiência. Continue, por favor.
— Um dos animais era inquieto e assustado. Todas as vezes que tentei acessá-lo sem ele perceber, ficava mais arredio. Quando cheguei pela frente, olhei bem nos olhos dele e fiz uma reverência, ele se acalmou e permitiu o acesso ao seu mental. Somente para você pensar um pouco, meu amigo. Agora preciso me retirar, fique em paz, até a próxima.
— Agradeço a visita e as palavras. Até a próxima.
Caminhei mais um tanto, pensando na tal aula. O que ela quis dizer com tudo aquilo? Bom, o Fulano está assustado e sempre fica exaltado quando tento fazer alguma pergunta mais direta em relação à postura dele. Só tem um problema, não vou conseguir olhar nos olhos.
Estava tão entretido em meus pensamentos, que me assustei com a gargalhada ao meu lado. Não quis perder os comentários futuros, então nem pensei em perguntar se a minha privacidade tinha ido para o brejo.
— Ainda pensando? Achei que você fosse mais inteligente, você não precisa olhar nos olhos!
Olhei e estava no final da rua, quase nem percebi que já estava a um passo do tal escudo. Não pensei duas vezes, dei mais um passo e fui parar na campa, dessa vez querendo mesmo estar lá.
— Fulano, está acordado?
— Sim, estava tentando me acalmar, não sei se aguento ficar mais tempo aqui. Estou ficando louco!
— Então vamos conversar mais um pouco, assim você se distrai. Que tipo de trabalho você fazia? Quais eram as intenções dos trabalhos?
— Outra vez com esse assunto!
— Está bem, não quer conversar, então vou ficar quieto.
— Tudo bem, fazíamos trabalhos para tudo, para serem eleitos políticos, para conseguir determinada pessoa, para tirar uma determinada pessoa do caminho, até para adoecer pessoas também fizemos, dentre outros muitos. Por que a pergunta novamente?
— Você não acha que tudo que está vivenciando agora é porque estava longe de ser correto com esses tipos de trabalhos?
— Claro que não! Se não fosse correto, por que permitiriam que a gente aprendesse a fazer? E não vejo nada de mal. A gente joga o trabalho, o resto é a pessoa atingida que já está com uma energia ruim e pega. A culpa é da própria pessoa.
— Que maravilha de pensamento! Ótima saída! Jogar a culpa em pessoas já debilitadas.
— Quem você pensa que é, Zé? Não permito que fale comigo desse jeito. Como falei, você mal me conhece, acha que pode ter essa liberdade comigo só porque bateu um tempo de papo?
— Não, Fulano! Posso ter essa liberdade com você porque sou o “senhor Lodo”! E estou na mesma porcaria de condição que você, exatamente porque fui muito burro em segui-lo.
— Você não é o “senhor Lodo”, porque se fosse, já tinha me tirado daqui. Brincadeira de mau gosto, estou chamando o “senhor Lodo” desde que entrei neste buraco e nada. Agora vem você falar que é ele.
— Pois é! Chame o quanto quiser, perdi meus poderes, perdi meu trono e estou aqui com você desde quando chegou. Não poderia mesmo escutar você chamar, porque não tenho mais esse nome.
— Mentira! Vá embora! — falou, gritando.
Nesse momento ficou tudo silencioso, levaram-no novamente para mais uma sessão de tormento.
— Arre! Demorou, mas desempacou, hein? Hahahah! Não preciso mais falar que quando ele está no lodo você pode ir passear, não é?
— Obrigado por suas instruções, senhor Invisível.
Não perderia mais tempo. Toda vez que o Fulano era levado, eu saltava da campa e ia andar pelo cemitério. Comecei a ver tanto espíritos quanto pessoas encarnadas perambulando para lá e para cá, mas ainda acho que não tinha permissão de conversar, pois eles me ignoravam completamente. Não me ouviam nem viam.
Eu já conhecia uma boa parte do cemitério. Resolvi parar de tentar falar com os outros, porque sempre ficava a ver navios. Presenciei muitos trabalhos! Ficava olhando, sempre meio de longe. Muitos eram bem-feitos e de coração, como o primeiro que descrevi, outros nem tanto.
Todas as vezes que eram trabalhos sérios e puros, sem sacrifício e fuzuê, eu, como estava conectado, “participando” do trabalho, acabava recebendo alguma energia que me recarregava.
Meus passeios estavam mais longos, o Fulano passava mais e mais tempo recolhido no lodo, mas quando o deixavam na campa, eu era atraído imediatamente para ela.
Uma das vezes, esperei que ele parasse de gemer e gritar e, então, falei:
— Fulano, você pode não acreditar, fingir que não está me ouvindo, mas sou mesmo o “seu” senhor Lodo. Não sabia que o que fazíamos me deixaria nessas circunstâncias, mas deixou, também tive meus sofrimentos e minhas punições. A última vez que ouvi seu chamado, quando cheguei para atendê-lo, você já havia desencarnado. Estava lá em seu corpo, mas o cordão do espírito já estava rompido. Hoje eu me encontro preso em sua campa, num cemitério, e a única diferença é que eu estou do lado de fora e você está aí dentro. Não tenho o que fazer para nos tirar desta situação, só sei que cada um vai ter que vivenciar o que é permitido no momento e esperar para ver quando isso tudo sanará e, então, poderemos cada um seguir seu caminho. Agora você já sabe. Está no mundo espiritual, seu tempo na Terra acabou, nem sei te dizer há quanto tempo! Todos os seus pesadelos são os espíritos que você um dia prejudicou.
— Eu não acredito em você! Ainda vão me achar e me tirar daqui e vou ter o prazer de te falar que estou indo embora e largar você aqui.
— Como quiser! Mas agora que falei tudo isso, quando você quiser pensar no assunto e voltar a conversar, pode ser que eu ainda esteja aqui, mas espero que não. Como disse, cada um com sua carga, eu já estou procurando sanar a minha. E, de coração, espero que você acorde logo para sanar a sua.
Conhecendo o senhor Invisível
Os dias que vieram ficaram longe da paz. O Fulano gemia, gritava, xingava, mas não dirigiu a palavra a mim. E eu também não quebrei a minha, somente falaria se fosse solicitado.
Tentava me desligar do barulho que ele fazia e, às vezes, até conseguia, mas muito pouco perto do que eu gostaria. Pensei brevemente que poderiam levá-lo para um passeio para eu poder sair dali mais um pouco.
— Está querendo que ele volte para a tortura? Somente para acalmar a sua?
— Olá, senhor Invisível! Fazia tempo que não te ouvia. Na verdade, não pensei nesse ponto que você mencionou, mas acho que sim, estou há dias ouvindo as lamúrias dele e está insuportável.
Senti algo encostando na minha cabeça e, de repente, os sons do Fulano ficaram longe, quase inaudíveis.
— Você que fez isso? Que alívio! Obrigado por isso.
— Realmente não é o que eu faço por aqui, mas parece que a Lei está satisfeita com o que você já passou e acho que não pretende continuar muito tempo com isso em relação a você.
— Estou compreendendo melhor tudo que fiz e tudo que ando passando, mas ainda estou preso aqui, não é?
— Cada coisa na sua hora. Se você seguir nesse novo “você”, pode ser que tenha boas experiências daqui para a frente. Só não repita os mesmos erros.
— Você pode falar seu nome?
Os gemidos começaram a aumentar e a voz sumiu. Pouco tempo foi me dado, mas já senti uma enorme diferença. Precisava desses minutos!
Lembrei-me de que tinha tido permissão para andar na rua, com os túmulos marcadores no início e fim da rua. Como não tinha pensado nisso até agora, acho que me envolvi demais ouvindo as lamúrias.
Levantei-me depressa e comecei a andar. Quase me senti rezando. Para funcionar, com cuidado, fui dando um passo de cada vez e comecei a caminhar. Por essa Lei, agradeço por isso, é um tremendo presente poder ficar um pouco distante da campa.
Mesmo continuando a ouvir tudo o que vinha do túmulo, era mais distante. Parava de tempo em tempo nos limites que haviam me imposto, tanto no início quanto no fim da rua, pois conseguia ficar quase em paz, ouvindo somente um tom baixo da voz do Fulano.
Comecei a vagar pela minha mente em relação à Lei. Não me lembrava mais do que havia aprendido, nem tão pouco de palavras que poderiam me esclarecer algo em relação a ela. Foi com esses pensamentos que se cessaram os gritos naquele momento.
Corri até a campa e realmente não se ouvia nada. Arrisquei um passeio e quando fui ultrapassar os limites da rua, vi-me no lodo, naquela névoa, e logo me enrijeci.
— Será que ainda tem algo a tirar de mim? Será que vou começar a pagar, como meu burro? Mas a voz tinha me falado que a Lei estava satisfeita, o que será que fiz de errado? — Aí ouvi minha companheira do Lodo.
— Nada! Acalme-se, concentre-se, não será agradável, mas você tem que ver o que será te mostrado aqui.
— Por que você me ajuda tanto?
— Não é hora, concentre-se!
Respirei fundo, os olhos fechados, porque desde que cheguei e vi a névoa, não tinha me atrevido a abri-los. Então abri devagar e vi o Fulano acorrentado e, ao seu redor, muitos, mas muitos espíritos se revezavam ao chegar perto dele. Uns falavam algo nos seus ouvidos, outros batiam com as mãos, ou chicotes, ou atiravam coisas, e outros não paravam de xingar.
— Acalme-se e tente ver quem são esses espíritos.
Estava começando a ter pena do Fulano. Respirei e foquei no que ela me pediu. Sabia que pena não era um sentimento bom e tão pouco gostaria de compartilhar tudo aquilo com ele tão de perto.
Fui me concentrando e foram aparecendo os rostos dos “torturadores”. Fui recordando-me de cada um que olhei. Alguns eram espíritos que mandamos perturbar pessoas, outros eram das próprias pessoas perturbadas e certos rostos não eram familiares a mim.
— Os rostos que você não conhece são de pessoas que você não fez parte das maldades feitas a elas. São amantes que ele enganou, seduziu com promessas ou utilizou a posição de babalaô para conquistá-las. Algumas são mães que, por estarem tão envolvidas com a “religião”, entregaram suas filhas a ele.
— Pronto, podemos ir embora, te deixo lá no cemitério. Só trouxemos você aqui para esclarecer que realmente cada um tem sua carga e a sua está sendo sanada. Não tenha pena nem tente ajudá-lo, primeiro porque você não tem forças nem poder; e segundo que, se fizer, vai voltar a cair em desgraça.
No segundo seguinte estava eu parado em frente a uma capela, simples e muito bonita, olhei ao redor e vi que ficava dentro do cemitério. Resolvi entrar e me sentei, fiquei ali pensando em tudo que tinha visto no lodo e adormeci.
Sem noção do tempo que havia dormido, abri os olhos e me senti revigorado. Agradeci pela acolhida daquele lugar e, então, saí caminhando durante um bom tempo, somente desfrutando da liberdade e daquela paz que há muito não sentia.
Ainda não conseguia ver movimentações. Alguns espíritos que via continuavam a não me escutar. Claro que agora eu tentava falar muito pouco. Acho que estava me acostumando a estar invisível a quase tudo. Peguei-me sorrindo quando pensei nisso, por causa da voz que aparecia de vez em quando. Acho que eu é que era o senhor Invisível afinal, porque, com certeza, ele tinha com quem conversar e, com certeza, também não era ignorado.
Acabou meu passeio. De volta à campa, o Fulano estava quieto, mas ouvia um choro bem baixo. Quebrei o silêncio e perguntei:
— Está tudo bem com você?
— Está! Me deixe em paz.
Nada mais falei. Quando olhei para a rua, vi uma figura com uma grande capa preta esvoaçando ao vento. Pisquei várias vezes para ver se era real. Tinha o rosto de caveira e caminhava tranquilamente. Nem vou tentar falar, normalmente ninguém me responde e acho que não me veem também.
Ele passou e falou “boa tarde”, olhando em minha direção, e no reflexo olhei para trás achando que havia falado com alguém às minhas costas, mas não havia ninguém. Quando olhei de volta para a rua, ele simplesmente tinha sumido.
Passei horas deitado olhando o céu. Era uma das coisas de que gostava de fazer enquanto o Fulano estava quieto. Tranquilizava-me e, estando nesse estado, eu conseguia pensar e repassava cada momento que tinha vivido depois que parei naquele cemitério. Os trabalhos, as conversas com a voz, a perda do meu trono e conhecimento, a minha companheira do Lodo.
E assim escureceu, amanheceu, e eu ali deitado. Sentei-me e vi a figura novamente descendo a rua, capa preta e rosto de caveira.
— Bom dia! — falou, em tom seco.
Como não sabia se era comigo ou não, somente acenei com a cabeça. Achava que se fosse para falar comigo, ele viria a mim, e não simplesmente sairia conversando. Poderia estar faltando com o respeito.
Acompanhei com os olhos até que ele virou à direita no final da rua. Nunca tinha ido para aquele lado, então não sabia o que tinha para lá.
Vários dias se passaram, muitos mesmo. Até eu ter coragem de responder ao cumprimento. Foi quando ele parou e veio até mim.
— Vejo que tomou coragem de me cumprimentar. Que evolução!
— Sim, vejo o senhor passar por aqui todos os dias e cumprimentar alguém, não sabia se era eu.
— Claro que era você, mas acho que demorou um tempo para você estar pronto a abrir suas comunicações.
— Sinceramente, não sabia se conseguiria, estou aqui e nem tenho ideia de quanto tempo, e todas as tentativas de conversa foram frustradas. Não me viam, não respondiam, então acho que me acostumei.
— O que faz aí todos os dias?
— Estou preso aqui, não posso fazer muitas coisas. Somente posso caminhar nesta rua enquanto o Fulano aqui está presente na campa dele. Às vezes o levam para algum lugar e aí posso andar por aí, mas assim que ele volta, sou sugado para cá.
— Nossa! Que tédio!
— Nem me fale! Além da agonia quando ele começa a gritar, gemer e outras coisas. Mas é a vida que me trouxe aqui, escolhas que fiz e agora esta é minha penitência.
— Quer sair um pouco daí?
— Querer eu quero, mas não posso, chego até o final da rua só, depois, se eu passar do ponto, volto imediatamente para cá.
— Pode sim, se estiver comigo.
Uma enorme onda de felicidade invadiu meu ser, levantei-me da campa e nitidamente ele viu minha ansiedade.
— Acalme-se, não poderei levar você se estiver assim tão radiante, acredito que esteja feliz de sair daqui, mas vai ter que se controlar, achei até que ia me abraçar, espero que não faça isso, tudo bem?
— Tudo bem! Me desculpe. Como o senhor se chama?
— Exu Caveira ou, se preferir, senhor Invisível — falou isso e deu aquela gargalhada.
Fiquei atordoado por alguns instantes e, quando voltei a mim, sorri e falei:
— Então era o senhor, já me conhece e isso dispensa minha apresentação. Por que tem me ajudado tanto?
— Bom, primeiro retire o senhor, me chame de Caveira mesmo, senhor Invisível vai ficar meio estranho. E eu vou te chamar de Zé, já que escolheu esse nome aqui.
— De acordo, senhor Caveira.
— Que seja, se quiser usar o senhor. Vou esclarecer algumas coisas para você. Acho que agora tem a permissão e o que merecer eu poderei falar. Vamos andando enquanto conversamos. Estou te ajudando a um pedido de uma amiga em comum, a sua companheira do Lodo. Ela tem alguns créditos comigo e falou se eu poderia ficar de olho em você. Como vê, aceitei a tarefa, já que devo a ela.
— Muito obrigado!
— Acho que o agradecimento é a ela, não a mim. Quero saber uma coisa de você: acha que está pronto para voltar a aprender?
— Se for permitido e se eu merecer, gostaria muito! É o que venho pensando desde que passei por tudo que passei.
— Você já está aqui há seis para sete meses, no relógio da Terra. É muito tempo para nós no plano espiritual. Pelo que venho acompanhando, você passou o que tinha que passar e está revendo seu interior de uma forma boa, acho que não vai cometer os mesmos erros!
— Espero muito que não, se estiver disposto a me ensinar, eu estou pronto a aprender.
— Mais um aviso, enquanto estiver comigo, você está liberado da campa de seu antigo burro. Quando não estiver, terá certa liberdade quando executar tarefas que eu indicar, e nunca saia do cemitério, essa agora é a sua limitação.
— Para mim está excelente, senhor Caveira.
— Ótimo, porque chegamos ao meu ponto de força, a entrada do cemitério, daqui a alguns minutos será aberto ao público e nós é que controlamos quem entra e quem sai, e mantemos a ordem para não haver tumultos, obsessões e acompanhantes indesejados, além de organizar o recebimento das entregas de trabalhos feitos aqui na porta. Vou te deixar primeiramente com o Tatá Caveira, ele é o porteiro oficial deste cemitério. Ele vai te ensinar a ver o que procuramos e como intervir caso seja necessário. Tatá, este é o Zé, está sob meus cuidados. Queria que o ensinasse como nos portamos em uma entrada de cemitério.
— Será um prazer, Caveira. Bem-vindo, Zé, fique à vontade, começaremos daqui a pouco, quando os portões se abrirem.
Não tenho palavras para expressar a felicidade e gratidão que estava sentindo, ainda passou pela minha cabeça que eu não era merecedor de tamanha oportunidade.
— Tire esses pensamentos da mente, Zé! Somente fique com a felicidade e gratidão — falou o senhor Tatá, com um sorrisinho.
Olhei o senhor Caveira caminhando distante, e vi que havia se encontrado com a minha companheira do Lodo. Pensei nela com muito carinho e agradeci imensamente. Ela olhou para trás e deu uma piscadela para mim.
Estava cheio de vida e vontade, atento a tudo que o senhor Tatá fazia. Abriram os portões, ele me pediu para ficar em um canto, colocou-se bem no centro da entrada e falou:
— Com a Lei sendo aplicada em chão sagrado deste cemitério, abrimos nosso ponto de força para mais um dia de trabalho. Que todos os companheiros estejam focados e que a Lei esteja acima de todos nós.
Tatá Caveira e a porteira do cemitério
De onde eu estava tinha perfeita visão de toda a entrada. Fiquei focado no senhor Tatá, vendo tudo que ele fazia. As pessoas que entravam passavam por ele, e ele, por sua vez, olhava cada um de cima a baixo, ora erguia seu manto e parecia peneirar alguma energia da pessoa, normalmente em cores escuras, preto, marrom e até vermelho-sangue. Após a pessoa passar, escorria uma coisa densa da capa e ficava ali no chão. Ora levantava a mão para algum espírito que ia entrando, que imediatamente parava e outro trabalhador o conduzia a uma espécie de tenda que ficava ao lado dos portões, encostada no muro.
Enquanto tinha movimentação, essa era a rotina. Muitos dos que passavam pelo manto chegavam a suspirar em seguida, como se tivessem sentido um certo alívio. Senhor Tatá parecia estar em vários lugares ao mesmo tempo, a velocidade com que ele se movimentava era indescritível! Tive que aprimorar minha visão, pois de tempo em tempo eu o perdia de vista.
A cada calmaria do trânsito de pessoas, ele fazia alguns gestos com as mãos e murmurava frases, logo em seguida sua capa estava novamente limpa e brilhando. Depois alguns passos que pareciam uma dança e mais frases e toda aquela crosta de energias deixadas no chão evaporavam.
Na maioria das vezes, fazia o ritual sozinho, mas de tempo em tempo se juntavam trabalhadores com ele. Cada um tomava uma posição com uma certa distância e todos faziam tudo muito sincronizado. Foi então que percebi que todos eles tinham suas capas sujas e que a rua também estava com crostas em toda sua extensão. Durante todo o dia, enquanto as portas estavam abertas, esse ritual acontecia.
Eu olhava tudo com muita atenção, não queria perder nada. Meu ânimo e minha energia estavam à flor da alma. Não me sentia assim há muito tempo.
Senhor Tatá chamou um dos companheiros de trabalho e falou algo que não pude ouvir. Em seguida, o trabalhador tomou seu lugar no centro da entrada e o senhor Tatá veio ao meu encontro.
— Como está, Zé? Gostando do que está vendo, pelo que posso sentir.
— Sim, gostando muito. Impressionante a leveza com que o senhor conduz, a firmeza e todo o ritual é maravilhoso de se ver.
— Obrigado, em breve explicarei como você, que é novato aqui, pode começar a pesquisar essas energias e como diferenciar os espíritos que podem ou não adentrar em nosso ponto de força. Agora me acompanhe, você já viu muito tempo disso, nada vai mudar aos seus olhos por enquanto, então vamos ao segundo ponto da porteira para você acompanhar o atendimento aos espíritos barrados.
Caminhamos um pouco, as barracas que comentei ficavam a uns quinhentos metros dos portões. Havia várias, tanto à esquerda quanto à direita.
— Posso fazer perguntas, senhor Tatá?
— Claro que pode, meu camarada! Está aqui para aprender, não está?
— Sim, agradeço. Existe diferença entre as barracas? Estou vendo que são muitas.
— Energeticamente, nenhuma diferença, somente a mobília e alguns aparatos é que são diferentes. Agora estamos chegando à barraca de triagem. Veja, existem somente cadeiras e um encarregado para falar com eles e os direcionar. Onde eu estava na porteira, o trabalhador de passagem impede a entrada do espírito que não tem autorização, em seguida o trabalhador de acompanhamento vem buscá-lo, levando-o para a triagem. Você viu que tem mais desses trabalhadores, tanto de passagem quanto de acompanhamento, não é? — perguntou o senhor Tatá.
— Sim, vi sim, senhor.
— Ótimo, estava prestando atenção. Continuando, aqui na triagem é feito um levantamento e os encaminhamos às outras barracas. Vou te deixar aqui um tempo para você também ver como funciona. Alaor, posso interromper um segundo?
— Claro, Tatá, você é sempre bem-vindo e nunca interrompe. É um privilégio receber sua visita, você quase nunca sai do seu posto.
— Quero te apresentar o Zé. É o primeiro dia dele aqui e ele está fazendo um estágio de observação em cada posto da nossa falange. Não precisa mudar sua rotina, ele fica em um canto somente observando. Se estiver ocioso, pode esclarecer algo a ele, se tiver dúvidas.
— Prazer, Zé, pode se sentar à minha mesa, quase nunca a utilizo, prefiro ficar andando de cadeira em cadeira a chamar um por um à minha mesa. Assim me movimento.
— O prazer é meu, obrigado pela acolhida.
Senhor Tatá voltou ao posto e Alaor voltou a conversar com os que estavam para serem atendidos.
Alaor não tinha aparência de caveira como todos os outros trabalhadores da porteira. Um senhor grisalho, muito alto e sempre com um sorriso amigável, vestia roupas brancas e tinha uma espécie de prancheta e uma caneta, ou bem parecido com isso aqui na Terra.
Fiquei observando com a mesma intensidade de antes. A tudo que ele fazia e dizia eu estava atento.
Começou a atender uma senhora que estava tremendo. Primeiramente, parou à sua frente e somente ficou olhando. Parecia que estava fazendo um Raio-x de corpo inteiro e escrevendo tudo o que via. Após terminar, apoiou a prancheta em um local atrás da cadeira. Automaticamente olhei todas as cadeiras e todas tinham esse apoiador.
Esfregou as mãos, respirou fundo e colocou as duas mãos sobre a cabeça da senhora. Imediatamente ela parou de tremer. Ficou por alguns minutos e vi que a senhora começou a corar. Ela tinha um tom cinza e foi ficando rosada. Assim que ele acabou o “passe”, olhou para mim e indicou com a cabeça algo no chão.
Foi então que percebi que as cadeiras também tinham um recipiente logo abaixo e que toda aquela coisa cinza estava fluindo da senhora pela cadeira e indo parar nesse recipiente.
Após a senhora estar melhor, ele começou a conversar com ela, e aqui vou resumir bem para não adentrar em conversas íntimas dessas pessoas. Basicamente, ele perguntava se ela estava melhor e se entendia seu estado; explicava um pouco do que representava aquele atendimento e se ela aceitasse, poderia, a partir daquele momento, tomar outro rumo, encarar a vida espiritual e ser encaminhada para onde ela deveria estar.
A senhora aceitou as explicações e quis continuar o atendimento, então o senhor Alaor fez um sinal com a mão para um trabalhador que estava de prontidão em frente à barraca. Todos os trabalhadores dessa barraca tinham aparências humanas. Ao chegar perto da senhora, perguntou se conseguia andar e, ao ver que se levantou, deu o braço a ela e falou para acompanhá-lo.
— Para onde a levo, Alaor?
— Leve-a para receber ectoplasma na cabine com camas, ela ainda está fraca e acredito que adormecerá um pouco.
O rapaz saiu apoiando a senhora e logo os perdi de vista. Alaor me chamou a atenção estalando os dedos e fazendo sinal para eu ficar de olho no que ele estava fazendo.
Ficou em pé em frente a um homem que parecia muito sofrido, todo sujo e com barba a fazer e também tremia muito. Utilizou o mesmo processo que descrevi com a senhora. Realmente, melhorou muito de aparência. Assim que se sentiu bem, levantou-se bruscamente e foi para cima de Alaor, que só levantou a mão, como o senhor Tatá, e o homem despencou na cadeira.
Não voltou a tremer, mas ficava se debatendo na cadeira, acho que não conseguia falar. Alaor calmamente explicou tudo como antes. Assim que acabou, fez um gesto com a mão e o homem começou a xingar e falar um monte de absurdos, ainda se debatendo na cadeira.
— Meu senhor, é a última tentativa que faço, a escolha é sua, mas você não vai fazer arruaça aqui, teremos que colocá-lo para fora.
— Quem vocês pensam que são? Me soltem e eu mostro o que vou fazer com vocês!
Alaor fez sinal com a mão e dois Caveiras vieram para a barraca, cumprimentaram e se colocaram à frente do homem. Assim que Alaor fez outro gesto com a mão, o homem foi para cima dos dois Caveiras e eles pegaram um em cada braço, colocaram uma corrente no pescoço e o homem estava imobilizado. Foi levado em direção à porta e não vi qual foi o procedimento realizado, pois saíram com ele do cemitério.
Os atendimentos foram muitos e quase não houve tempo ocioso, mas consegui alguns minutinhos para fazer perguntas.
— Posso perguntar algumas coisas, senhor Alaor?
— Claro que pode, Zé. Somente não me chame de senhor.
— Está bem, Alaor! Por que você não tem o formato de caveira, e sim de humano?
Nesse instante ele se mostrou como caveira e respondeu:
— Aqui neste posto recebemos todos em estado de choque. Viu como eles ficam tremendo? Todos já estão um bocado assustados, então na triagem nos apresentamos em formas humanas para tranquilizar esses espíritos perdidos.
— Nossa, cada resposta gera mais um punhado de perguntas.
Deu uma sonora gargalhada e falou:
— Vamos conversar enquanto não tem gente para atender, aproveite seu tempo.
— Por que eles chegam tremendo e ficam nesse estado até você aplicar o “passe”?
— Você viu como são brecados na porteira, não viu?
— Sim, o senhor Tatá levantou a mão e o espírito parou na mesma hora.
— Então, acho que sua vidência ainda não voltou ao normal, mas nesse momento o espírito é atingido com uma bola de energia que o envolve e o paralisa, deixando-o completamente suscetível ao que quisermos fazer com ele. Em seguida, um de nossos trabalhadores vai pegá-lo e, assim que chegam, falam: “Me acompanhe”, puxando-os pelo braço, e eles simplesmente acompanham. Quando chega aqui e é colocado na cadeira, o trabalhador que o trouxe retira a energia da paralisia, ele começa a tremer e sua essência atual vem à tona. O meu “passe”, como você chamou, elimina o restante da magia dos Caveiras e limpa superficialmente o perispírito para que possamos conversar e aí direcioná-los.
— Extraordinário! Estou encantado.
Ele deu outra gargalhada e completou:
— Você é uma pessoa especial. Seu entusiasmo e seu humor vão te levar muito longe.
— Obrigado! Mas não me acho assim, fiz muita coisa errada e sou muito grato à Lei por poder voltar a aprender.
— Vá em frente, todos nós passamos a eternidade cometendo erros. Caímos e levantamo-nos. Sempre será assim, pois precisamos conhecer o pior, o fundo do poço, para depois renovar as forças e dar valor novamente à vida.
— Acho que ainda dá tempo para perguntar, por que você não atende na sua mesa? Vi que a cadeira que a pessoa sentaria também tem todo o aparato para o atendimento, a sua cadeira não tem! Mas atendendo na mesa não ficaria mais privado?
— Eu gosto de me movimentar. Prefiro andar entre eles, porque assim atendo também quem está precisando mais e não por ordem de chegada; e quanto à privacidade, pode se tranquilizar. Os que ainda estão tremendo não sabem nem seus nomes, quanto mais ouvir uma conversa.
— Estou impressionado com tudo, e estou amando poder fazer esse aprendizado. Agradeço novamente.
— Não tem necessidade de agradecer a cada frase, Zé! É visível sua gratidão! Seu entusiasmo em aprender acaba nos incentivando ainda mais.
Chegaram mais alguns para serem atendidos. Imediatamente Alaor se colocou em trabalho e eu em sua cadeira. Fiquei ali até os portões se fecharem.
E tudo mudou de figura, todos agora estavam com suas aparências de caveira e cada um tinha uma capa, a maioria preta. Algumas eram vermelhas e umas poucas de cores variadas.
Todos se reuniram no portão e o senhor Tatá se encontrava ao centro. Vi chegando o senhor Exu Caveira, que se colocou em frente ao Tatá e ambos começaram a falar:
— Que a Lei feche essa e todas as portas desse ponto de força, que ela nos permita adentrar a noite protegidos para que possamos trabalhar e deixar tudo em ordem para um novo dia.
Todos saíram se cumprimentando, inclusive eu fui cumprimentado acho que por todos. Para quem estava sozinho até ontem, fiquei até meio atordoado.
Vi que após os cumprimentos, todos saíram para realizar tarefas. Todas as limpezas que descrevi no início dos trabalhos foram feitas novamente. Logo após, um grupo foi cuidar das oferendas, levar todas para o plano astral, antes que chegassem os funcionários do cemitério para recolher o físico.
Outro grupo ia de rua em rua fazendo uma espécie de oração, e todas as energias que não pertenciam àquele lugar eram evaporadas.
Alguns grupos se dividiram entre todas as barracas. Foi quando Alaor parou ao meu lado e me chamou:
— Vamos, Zé! Vamos continuar o seu tour.
Primeiro fomos à barraca de triagem, onde ele também fez gestos com a capa, dançou e murmurou frases. Após o término, a barraca parecia nova, tudo em seu lugar e com um brilho que não tinha até então.
— Agora que acabamos aqui, vamos averiguar cada barraca e ver como estão todos os irmãos que quiseram ficar.
Em todas elas, trabalhadores cuidavam dos atendidos. Algumas com camas, outras com cadeiras, outras com um tipo de alimentação, mas todas tinham “aparelhos” que estavam ligados a eles e que transferiam um líquido meio luminoso aos seus corpos.
Das pessoas que eu havia presenciado na triagem, todas estavam com uma aparência totalmente diferente, recompostas. As que tinham feridas já estavam cicatrizando ou cicatrizadas, e fiquei sem palavras para descrever o que senti ao ver o resultado.
Então Alaor me levou até a barraca de alimentação. Muitos espíritos estavam ali, alguns sentados e outros em pé mesmo, tomando uma espécie de sopa. Ele me ofereceu e perguntei:
— Podemos comer também? Não sinto necessidade de comer.
— Podemos sim, não que seja necessário, mas para você experimentar.
Peguei uma tigela que se encontrava em uma pilha no canto da mesa, coloquei uma concha e experimentei. O sabor não era parecido com nada que havia tido o prazer de experimentar. Era indescritível! Só sei que ao tocar nos meus lábios e tomar o primeiro gole, meu corpo inteiro se aqueceu e uma energia especial percorreu todo meu ser.
— Realmente somente um gole me deixaria satisfeito, mas já havia servido uma concha, acho que estarei alimentado para o próximo século.
— O seu humor vai te levar longe, já falei isso! — dando risada, Alaor comentou.
Seguimos com um grupo que havia tido alta para um local do cemitério que eu já conhecia, a capela. Estava toda iluminada e havia um grupo de espíritos com roupas brancas e uma espécie de cajado, também branco. A luz que emanavam era tão forte, que quase não dava para ficar olhando para eles.
Alaor se aproximou de um deles, não pude ouvir o que conversaram. Fizeram reverências e todos os atendidos foram entrando na capela; em seguida, todos os de branco entraram e fecharam a porta.
O grupo de Caveiras e eu começamos a voltar para as barracas e aproveitei para perguntar:
— E agora, Alaor, os atendidos vão para onde?
— Cada um vai para o lugar que está mais próximo da sua energia. Aceitaram o atendimento, então alguns serão levados e continuarão sendo tratados; aqueles que estavam com chagas, por exemplo, outros que já estão melhores vão encontrar afazeres para eles e, claro, também continuam em tratamento.
— Na capela eles todos vão adormecer para que nossos amigos da luz os levem se transportando e sem eles sentirem. Se tivéssemos ficado lá, você ouviria a bela música que faz todos dormirem, mas ainda terá oportunidade. Bom, Zé! Essa é nossa rotina de trabalho da falange dos Caveiras. Foi um prazer te conhecer e volte quando quiser para a barraca da triagem. Agora te deixo na companhia do Exu Caveira e tenha um ótimo dia.
Quando olhei, o dia estava amanhecendo. O Exu Caveira somente me apresentou para a próxima barraca e assim passei os outros dois dias me familiarizando com cada setor dessa falange extraordinária.
Não me estenderei, pois já resumi o todo. Conheci muitos mais nessa falange, todos me receberam muito bem e me ensinaram muitas coisas, mas a afinidade mais forte que tive foi com o Alaor, por isso decidi descrever com mais detalhes o seu setor.
Todos que conheci até hoje fazem parte da minha vida. Tanto eles quanto eu visitamos as falanges uns dos outros e temos muitos pactos para podermos executar nosso trabalho dentro da Lei e com nossos aparelhos nos terreiros.
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Quem já perdeu tudo na vida?
Imagine isso! Não estamos falando de bens materiais, pois, para onde o Zé das Campas foi, esses bens não existem! Por ter utilizado seus conhecimentos de maneira errada, essa fase de sua vida simplesmente desapareceu, foi retirada de seu “ser”.
Quais são as consequências das nossas escolhas? É possível resgatar nossas faltas? Ainda, há esperança de encontrar um novo caminho? Essas perguntas nos levam à introspecção e reflexões.
Essas e outras questões você encontra acompanhando essa trajetória, em um fluxo constante e natural de oportunidades de vida, sempre disponíveis para quem está pronto para aproveitá-las.
Compartilhando a jornada de seu novo caminho com guardiões e “falangeiros” presentes em um cenário — que é o limite das dimensões de um cemitério e suas diversas escolas — e passando por lugares inovadores e situações diversificadas, Zé pôde encontrar o melhor de si e enxergar as dificuldades que podem acometer aqueles que demoram a sair das amarras do egoísmo e do apego ao poder.
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Eu sempre atualizo essa página com o conteúdo das redes sociais, para quem quiser acompanhar a trajetória do livro: Zé das Campas, queda e ascensão. Aproveitando a oportunidade que a vida oferece.
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